terça-feira, 27 de abril de 2010

Minha mãe, nossa família


- Minha mãe, nossa família



           Meu pai está construindo um prédio. Enquanto não termina a obra o vejo mergulhado em seus cálculos, os dedos frenéticos batem à calculadora, o rosto aflito. Foi sempre assim, com sua matemática, orgulhoso por mesmo tendo frequentado pouco a escola, ser melhor em cálculos do que muita gente estudiosa. Os números prendem meu pai à realidade. Enquanto eu tento fugir dessa realidade através das letras e palavras, com ficção e poesia, revivendo histórias com pontos e vírgulas, lendo um bom livro. Meu pai com os pés no chão, eu perdido no mundo da lua. Em algum momento meu pai concluiu que os números viriam em primeiro lugar, os sentimentos em segundo plano. Eu recupero sentimentos e os guardo em folhas de papel. 

            Meu irmão com seus jogos eletrônicos e aparelhos tecnológicos. Fascinado a cada avanço da tecnologia. Enquanto eu com meus livros velhos oriundos de sebos e bibliotecas. Desde a infância ele com seu Atari, eu com meu gibi da Turma da Mônica. Sempre me surra no videogame. Apanho do meu próprio computador. Enquanto ele é praticamente um técnico em informática sem nunca ter frequentado curso algum. Meu irmão contemporâneo, eu anacrônico. 

          Minha mãe sempre preocupada com a nossa alimentação; se estamos bem aquecidos, com a saúde intacta. Não vê a barba em nossos rostos e nos trata feito crianças. Tão dedicada a todos nós que se esquece de si mesma. Enquanto eu concentrado em mim, às vezes esqueço de todo o resto. Há tempos minha mãe passava merthiolate nos joelhos ralados do meu irmão, fazia chá de alho para curar a gripe do meu pai que nunca vai ao médico, levava-me às pressas ao hospital porque eu estava mais uma vez com a garganta inflamada. Mãe nos ama incondicionalmente, eu nunca aprendi amar direito. 

         O prédio do meu pai terá três andares, tem alicerces fortes para sustentá-los. É com um sorriso bobo no rosto que percebo que a vida nos pregou mais uma peça. Tudo é uma grande metáfora. O prédio representa minha família, os três andares são meu pai, meu irmão e eu. Os três homens distintos, o matemático, o letrado, o tecnólogo. Tão diferentes e ao mesmo tempo iguais. O alicerce da fundação é minha mãe, que nos sustenta e nos mantém intercalados. Os andares são divididos por paredes de tijolos e concreto, e ligados por vigas de cimento e ferro. Somos separados por nossas individualidades, mãe nos une pelo afeto.


Ricardo Chagas dedica esta crônica a Judith Aparecida de Camargo Chagas
Publicado no Folha de Londrina 28/04/10

terça-feira, 20 de abril de 2010

Aurélia


Aurélia



Quando te vejo de olhos lacrimejantes de tanto chorar pela pessoa errada... O verde bonito virou um vermelho triste. E eu sem ter o que fazer, faço-me de palhaço para te arrancar um sorriso. Você ri um riso tão sem graça, suspira fundo e diz que a vida é complicada. Queria te mostrar que a vida pode ser simples e doce. Como um sábado e domingo de sol, com pipoca e Coca-Cola, comédia romântica na TV, aconchego no sofá, raspa de doce de leite no fundo da panela

Como um beijo de mãe, abraço de pai, carinho de avós, passeio no parque de mãos dadas, farelo de pão para os pássaros, assistir o pôr-do-sol abraçados.

Como churrasco com os amigos, roda de bate-papo, cerveja sem ressaca; jogo de cartas, música ao vivo, amor de madrugada, comer a caixa toda de bombons sem culpa, beijo com gosto de Sonho de Valsa.

Mas você não me ouve. Concentrada no seu livro de gramática, a decorar suas regras. Tanto que já te apelidaram de Aurélia. Diz que amar é verbo intransitivo indireto, porque quem ama, ama alguém. E ficamos outra vez sem nos entender. Porque eu queria amar sem regras, escrever sem conhecer a gramática, e continuo sem ter alguém.

Você pensa no seu príncipe encantado, que nada tem de encantado, que nem passaria como nobre vagabundo. Eu escrevo versos em folhas avulsas, depois amasso e atiro contra o ventilador.

Você diz que escrevo tudo errado. Que não sei concordância, coesão, coerência, pontuação e ortografia. Digo que não está errado, que criei um neologismo involuntário. Você sorri, diz que só me perdoa que porque tenho licença poética. Observo seu sorriso, seus dentes alvos, sua sobrancelha saliente, teu olho verde, tua unha pintada de vermelho, o tilintar de suas pulseiras e brincos, a maneira como joga os cabelos para trás. Cada gesto seu é um poema.

Só te perdôo porque você é uma poesia que respira.


Publicado pelo Folha de Londrina 18/11/09

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Eu estarei lá.


   Filho,sinto um grande orgulho a cada pequena conquista sua. A cada palavra nova que aprende ou repete. A cada gesto de valentia e independência. Como na vez que decidiu subir as escadas do escorregador sozinho, eu, ao seu lado, soberbo, cauteloso de prontidão para agarrá-lo, se suas perninhas trôpegas errassem algum degrau. 

Mas você cumpriu sua tarefa com imponência e demonstrando que está crescendo rápido e eu ficando velho. Estive ao seu lado no seu primeiro sorriso, embora tenham me dito que não era um sorriso, que só estava com dor de estômago, mas parecia um sorriso e era lindo.

Fiquei orgulhoso até mesmo quando você sujou as fraudas pela primeira vez. Filhos ao seu lado, eu fico bobo.

Quero estar com você quando marcar aquele gol na partida de futebol, pular o alambrado e participar da comemoração, mesmo que os seguranças me botem para fora. Vou querer matar o juiz que não marcar a falta que fizeram em você, estrangular o garoto gordinho que te passou o pé por trás. Mesmo que você nunca chegue a gostar de futebol, meu time de coração sempre será o Gabriel Futebol Clube. Só te peço filho, que não seja corintiano.

Quero estar ao seu lado em sua primeira dor de cotovelo. Explicar que sofrer por amor é inevitável. Ajudar a escrever a cartinha romântica. Passar gloss de morango na garota que te dará o primeiro beijo. Comemorar com você aquele dez na prova, reclamar com a professora que te deixou por três décimos.

Puxar sua orelha se virar um bagunceiro. Quero te ensinar a andar de bicicleta, passar pomada no joelho ralado. Subir na árvore para pegar manga madura, ficar o dia todo tentando tirar os fiapos dos dentes. E, se por um acaso, eu não estiver, não serão os quilômetros que nos farão pessoas distantes, porque você é o meu afeto e ternura, um pedacinho de mim, que tem vida própria, que sorri, e faz a todos feliz.

Quando você for capaz de entender as letras e transformá-las em palavras, as palavras em frases e assim por diante. Com sorte adivinho aquilo que ainda não aconteceu. Você compreenderá o implícito e as entrelinhas. Entenderá que de uma forma ou de outra eu estarei lá. Basta fechar os olhos com força que vai sentir minha mão em seu ombro, e uma voz que sussurra em seu ouvido: Filho amo você.
Ricardo Chagas


Publicado no jornal Paraná Centro 10/01/10

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Quase amor



                                                                      Quase amor

      "Nada pior que o quase. Sim, o quase. Aquele lance incrível que você fez na partida de futebol, a bola passou triscando a trave. Você quase fez um golaço. Aquele concurso que você estudou tanto e faltaram apenas alguns décimos para tirar a nota desejada. Você quase conseguiu. Mas entre todos os quases, nada pior do que o quase beijo, o quase amor que não aconteceu.
       Os dois estão a sós em um lugar discreto, tendo aquela conversa gostosa, quando de repente a palavras cessam, os olhares se encontram, os lábios aproximam-se devagar em uma atração magnética. Súbito há um forte estrondo lá fora, ou o celular de um dos dois começa a tocar, ou chega um desavisado e atrapalha tudo. Pronto! O encanto é quebrado. O beijo não acontece, o amor não floresce. Mais uma vez o quase atrapalhou sua vida.
       O quase amor é o mais marcante de todos. Quem nunca viveu um? Um amigo meu, que não tem nada de lírico, ressalta ano após ano que a história de um quase beijo, e sua narrativa é digna de um literato. Aconteceu no colegial. Ele era apaixonado pela sua melhor amiga. Ambos estavam sozinhos dentro de uma sala de aula, quando acontece aquele clima... Os rostos se aproximando lentamente para o beijo tão desejado. BAM! Alguém quebra uma janela lá fora. Junto com a janela o encanto do momento também foi quebrado. A garota sorriu, deu um tapinha na testa dele e disse: “Você é um lerdo.” Muitos anos se passaram e o pobre coitado ainda sente o tapinha na testa que doeu no coração. Ainda quer matar o cara que quebrou a janela.
       Se você está no instante que precede um beijo, não se importe com o barulho lá fora, agarre a garota pelo colarinho e beije-a. Se o celular começar a tocar, enlace o pescoço do seu amado e beije-o. Se um desavisado chegar, dê as costas para ele e beije seu amor até perder o fôlego.
    Vamos fazer uma campanha universal contra o quase. Sair às ruas com cartazes com os dizeres: ABAIXO O QUASE! NÃO AO QUASE! MORTE AO QUASE! Pode parecer cômico, mas quem sabe não mudamos o mundo. Ou pelo menos quase."


Texto escrito por Ricardo Chagas, estudante de Letras da faculdade Univale de Ivaiporã e publicado no jornal Folha de Londrina no dia 07 de abril de 2010.