
- Minha mãe, nossa família
Meu pai está construindo um prédio. Enquanto não termina a obra o vejo mergulhado em seus cálculos, os dedos frenéticos batem à calculadora, o rosto aflito. Foi sempre assim, com sua matemática, orgulhoso por mesmo tendo frequentado pouco a escola, ser melhor em cálculos do que muita gente estudiosa. Os números prendem meu pai à realidade. Enquanto eu tento fugir dessa realidade através das letras e palavras, com ficção e poesia, revivendo histórias com pontos e vírgulas, lendo um bom livro. Meu pai com os pés no chão, eu perdido no mundo da lua. Em algum momento meu pai concluiu que os números viriam em primeiro lugar, os sentimentos em segundo plano. Eu recupero sentimentos e os guardo em folhas de papel.
Meu irmão com seus jogos eletrônicos e aparelhos tecnológicos. Fascinado a cada avanço da tecnologia. Enquanto eu com meus livros velhos oriundos de sebos e bibliotecas. Desde a infância ele com seu Atari, eu com meu gibi da Turma da Mônica. Sempre me surra no videogame. Apanho do meu próprio computador. Enquanto ele é praticamente um técnico em informática sem nunca ter frequentado curso algum. Meu irmão contemporâneo, eu anacrônico.
Minha mãe sempre preocupada com a nossa alimentação; se estamos bem aquecidos, com a saúde intacta. Não vê a barba em nossos rostos e nos trata feito crianças. Tão dedicada a todos nós que se esquece de si mesma. Enquanto eu concentrado em mim, às vezes esqueço de todo o resto. Há tempos minha mãe passava merthiolate nos joelhos ralados do meu irmão, fazia chá de alho para curar a gripe do meu pai que nunca vai ao médico, levava-me às pressas ao hospital porque eu estava mais uma vez com a garganta inflamada. Mãe nos ama incondicionalmente, eu nunca aprendi amar direito.
O prédio do meu pai terá três andares, tem alicerces fortes para sustentá-los. É com um sorriso bobo no rosto que percebo que a vida nos pregou mais uma peça. Tudo é uma grande metáfora. O prédio representa minha família, os três andares são meu pai, meu irmão e eu. Os três homens distintos, o matemático, o letrado, o tecnólogo. Tão diferentes e ao mesmo tempo iguais. O alicerce da fundação é minha mãe, que nos sustenta e nos mantém intercalados. Os andares são divididos por paredes de tijolos e concreto, e ligados por vigas de cimento e ferro. Somos separados por nossas individualidades, mãe nos une pelo afeto.
Ricardo Chagas dedica esta crônica a Judith Aparecida de Camargo Chagas
Publicado no Folha de Londrina 28/04/10