sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Coração em retalhos.

Coração em retalhos.
               Errei tanto tentando acertar. Bati a canela na quina da mesa, esfolei os joelhos e os cotovelos no chão. Fiz tantas cicatrizes no coração, que depois de remendado ficou parecendo à cara do Chuck: o brinquedo assassino. Bebi altos porres pra esquecer que era tímido, que tinha uma consciência, que detestava balada e achava tudo aquilo um devaneio tolo e inútil. E acordava com uma ressaca danada de mim mesmo. E enfiava a cara nos livros pra sentir aquilo que não sentia na vida real. E traçava diálogos e acontecimentos imaginários na cabeça, para tentar corrigir o que de fato aconteceu. Tudo em nome de uma felicidade que não sabia onde começava ou terminava. Em busca de algo preenchesse o oco do peito. Daquele sonho bom que me fez acordar com um sorriso no rosto pela manhã, sem que eu me lembrasse do que se tratava.
             E acreditei em tantas mentiras, menti tanto em busca de uma verdade. E ninguém, ninguém mesmo, conseguiu me ver através da couraça em que me escondo. Ninguém falou a mesma língua que eu por mais de uma hora. Nem conseguimos nos comunicar com linguagem dos olhos ou do silêncio. Tudo foi uma ausência presente. Uma impossibilidade de contato. Um monte de frases soltas, de longos silêncios que diziam mais que conversas banais, porém incompreendidos. Uma ânsia de fugir para depois ter um reencontro. De preencher o seu corpo com o meu, para esquecer por instantes que ambos se sentiam vazios. Mas o sexo dura muito pouco, a paixão dura muito pouco. E o que dura é a saudade, não do passado que tivemos, mas do futuro que poderíamos ter.
                Já me acostumei com essa angustia que às vezes me faz franzir os olhos, que dá azia no estômago, que me faz sair às ruas, desesperado, em busca de alguém pra conversar, só pra fingir que está tudo bem, e o pior é que finjo tão mal. Que me faz procurar rostos bonitos ao dia, para passear de mãos dadas e exibir na rua como se fosse um troféu. Que me faz procurar corpos fáceis na madrugada, pra descarregar uma volúpia descontrolada. E que me faz sentar diante de um computador para dizer por meio de palavras digitadas aquilo tudo que nunca consegui dizer diante de seus olhos. E mesmo que dissesse, mesmo que você lesse, não iria compreender. Porque entre nós há um abismo, e nenhuma de nós tem coragem de se jogar na esperança de nos encontramos no fundo. 
         Fico na beira do precipício, com um frio na barriga, sentindo o vento no rosto.

 Publicado no Folha de Londrina 12/09/2012

domingo, 1 de julho de 2012

Aprendendo com o pequeno homem.

Aprendendo com o pequeno homem.
            Quando fiquei sabendo que ia ser pai, fiquei apavorado. Não tinha condições financeiras e nem emocionais para criar um filho. Queria fugir, cavar um buraco, entrar dentro e não sair mais. Mas não havia como fugir, nem como voltar atrás. Teria que encarar mais uma imposição da vida .Eu que nunca havia passado muito tempo ao lado de mulher alguma, não sabia se estava construindo um lar, ou uma prisão. Por mais que me aconselhassem, eu não sabia o que fazer. Estava perdido. Tive que mudar de emprego, pois as despesas iriam triplicar.
          Oscilei de emprego em emprego, sem me encontrar. Triste e aflito. Mas quando o meu filho nasceu, quando me colocaram no colo aquele bebezinho e disseram que era meu, percebi que aquele pedaçinho de gente necessitava de mim. Naquele instante algo me fez entender que iria amá-lo e protegê-lo pelo resto da minha vida.
          A cada dia que passa ele se parece mais comigo. E me enche de alegria e orgulho, até mesmo quando faz xixi no tapete e me olha com a cara mais sem vergonha desse mundo e diz: “Fizi xixi...” E sorri. O sorriso que aprendi a amar. O sorriso pelo qual daria um pedaço de mim só para continuar a vê-lo. O sorriso pelo qual me faço de palhaço, brinco no chão feito criança, conto dezenas de historinhas imitando voz de fantoche, só para ver desabrochar mais uma vez em seu lindo rosto. O sorriso pelo qual eu morreria. 
           Quando vou passear de mãos dadas com ele, não sei se sou eu que o levo, ou ele que me conduz. Quando ensino a ele as coisas mais corriqueiras, como escovar os dentes, descer o escorregador, andar de motoquinha, sei que ele não é o único que aprende. Sou eu que reaprendo a viver. Porque antes dele, minha vida era como disse Macbeth: “Cheia de som e fúria, significando nada.”
           Hoje tenho a certeza que foi o grande Homem lá do céu, que me enviou aqui na Terra esse pequeno homem, para me ensinar a grande lição do amor.


  Crônica laureada com menção honrosa no VII Concurso Nacional de Crônicas Rubem Braga

segunda-feira, 14 de maio de 2012

o dia em que faltou luz.

          Estava no chuveiro quando a luz acabou. Em outras ocasiões isso me deixaria muito irritado. Mas porque o dia estava quente e abafado, e uma ducha de água fria caiu bem, e porque meu estado de espírito estava leve, não me importei. Os meus planos para aquela noite consistiam em me inscrever em um concurso público, via internet, enquanto ouvia música pelo rádio, depois assistir a um documentário pelo monitor do computador, e se possível, dormir cedo. No entanto sem energia elétrica meus planos foram frustrados. Nem um bom livro eu poderia ler, o dia ia morrendo suave e a luz que passava pelas frestas das persianas chegara ao fim. Já estava ficando entediado quando o meu celular tocou, era uma amiga que há tempos não via, só que no melhor da conversa a ligação caiu, o meu celular perdeu o sinal, por mais que eu tentasse fazê-lo voltar a funcionar, não conseguia. Se fosse outro dia teria ficado estressado, bradado pela milésima vez que iria jogar fora aquela porcaria de celular, entretanto estava tranquilo e feliz. Era um daqueles dias que parece que um anjo bom, desce do céu, e passa o dia todo ao seu lado sussurrando palavras boas em seu ouvido.
             Resolvi ir jantar enquanto ainda havia luz natural e poderia ver o que estava colocando dentro do prato. Como sempre havia um jantar quentinho preparado pela mãe, um privilégio que por mais que a gente cresça, não quer perder. O mau costume de jantar em frente à TV é tanto, que mesmo sem energia elétrica, fui para a sala com o prato na mão, maquinalmente. Minha mãe estava deitada no sofá da sala. Juntos no escuro, iniciamos uma longa conversa, como há muito tempo não fazíamos. Falamos sobre tudo, tudo mesmo, a vida, a morte, espiritualidade; passado, presente e futuro. Minha mãe me contou a história de meus antepassados, minha avó e meu avô e pessoas ligadas a eles. Histórias tão trágicas e cheias de superação, que dariam enredo para várias crônicas e contos e um bom romance, que certamente irei aproveitar no futuro. Na penumbra da noite minha imaginação desenhava a imagem nítida de muitos personagens que nem mesmo cheguei a conhecer.
             E quando a luz voltou nem demos bola para a TV, ela ficou parada no meio da sala, feito uma grande caixa vazia e sem vida. Quando fui deitar, antes de dormir, refleti sobre tudo o que aconteceu, descobri que havia herdado da minha mãe o meu dom de contar histórias, que os laços que nos uniam estavam fortalecidos. E que, embora tenha faltado luz, aquela foi uma das noites mais iluminadas da minha vida. 

 Publicado no folha de Londrina 09/05/2012

terça-feira, 27 de março de 2012

Amores de faz de conta.


Amores de faz de conta.

Faz de conta que eu te amo e você me ama. Que o abraço é apertado para não escapar. Que o é amor é devagarzinho para não terminar. Que essas quatro paredes são nossa muralha medieval. Vamos esquecer os carros que riscam a noite lá fora, com suas músicas estridentes e letras obscenas. O gosto de álcool e cigarro na boca. Vamos tingir os lábios de gloss de morango, cereja e tutti-frutti. Faz de conta que tudo vai dar certo.

Faz de conta que é um conto de fadas, com um final feliz. Que ainda somos puros, rabisque nossos nomes em um muro, dentro de um coração flechado. Que ainda somos românticos e lemos poesia aos suspiros, que os heróis vencem no final. Que ainda temos ídolos de pôsteres de parede. Que juntos vamos mudar o mundo.

Faz de conta que é eterno. Se machucar foi sem querer, se sangrar é ketchup. Que ainda escrevemos cartas de amor perfumadas, com corações e rostos felizes no lugar do pingo do “ i ”. Vamos assistir filmes que nos fazem chorar, ouvir músicas que nos fazem transgredir; ler o mesmo livro e marcar as páginas que sei que vai gostar. Vamos conversar noites a fio e esquecer de dormir.

Faz de conta que a noite não vai acabar; que amanhã não é cada um por si. Faz de conta que vai telefonar. Que não é uma paixão efêmera, uma luxuria à toa, um erro de percurso. A consequência de um caminho torto. Faz de conta que estarei ao seu lado ao amanhecer, que você estará ao meu lado quando eu precisar. Faz de conta Que vou te fazer caricia até você dormir, que vou velar seu sono, que vai ter sonhos bons e quando acordar eu ainda estarei aqui.
Faz de conta que tudo não é um faz de conta.


Publicado no jornal Paraná Centro 02/04/2012
Folha de Londrina 19/06/2013