domingo, 4 de maio de 2014

Névoa e raio de sol.


Névoa e raio de sol.

 Eu disse que não a amava, as palavras doeram ao sair, no entanto   quando ela as absorveu e entraram em seu intimo a dor se multiplicou.
Por isso ela chorou sentada na cama por alguns minutos, em um rompante, levantou-se, vestiu-se e começou apanhar seus pertences espalhados pelo quarto: perfume, cremes, óleos; em pranto derrubou alguns objetos que estavam sobre a cômoda e junto com eles caiu sentada no chão e voltou a chorar por mais alguns minutos. Eu implorei que ela não fosse embora naquele estado, que passasse a noite ali, que mais uma vez não faria diferença, e por mais que quisesse não conseguia sentir nada além de pena, uma pena danada de mim, dela e de nossa comédia romântica sem final feliz.
Ela, por fim aceitou ficar. Despejou rivotril na garrafinha d’água e apagou de calça jeans e cinto. Eu passei a noite lutando contra os fantasmas da insônia e me debati tanto que todo lençol abaixo de mim saiu, e dormi sobre a aspereza do colchão nu.
 Quando ela acordou me abraçou, beijou-me como se nada tivesse acontecido, como se tudo tivesse sido um sonho, como se ainda dormíssemos, quando recobrou a consciência perguntou por que eu não a amava, eu murmurei que não sabia.
 Pediu que deixasse que ela continuasse tentando me fazer feliz, como se soubesse como, como se eu pudesse lhe indicar direções, como se valesse a pena se sacrificar em troca de migalhas do meu carinho, como se não estivéssemos de olhos vendados tateando o escuro.
 Levantei-me para o café, enquanto sorvia o negro líquido, ela me abraçou por trás e perguntou mais uma vez por que não a amava, pedi-lhe, por favor, para não perguntar mais. Ao contrário do costume, ela não bateu a porta ao sair e assim não pude saber o exato momento que ela se foi, quando percebi que ela não estava mais ali e não mais estaria.
Sentei-me no chão e comecei a organizar os brinquedos espalhados pelo meu filho, ele estava atrasado, deveria estar ali dando vida à aqueles brinquedos. Os brinquedos que quis ter na minha infância e não pude, os meus personagens favoritos das histórias em quadrinhos, que não por coincidência, hoje também eram os dele. Os brinquedos que fazem a felicidade do meu filho, que fariam a minha, hoje me trazem nostalgia. Penso que por serem falsificações chinesas, podem ter feito uma criança perder a infância no oriente. Penso que a felicidade pode ser algo tão ambíguo e efêmero. Penso que a felicidade é apenas uma névoa.
Desisto de esperar meu filho e vou cuidar dos meus afazeres. Ele entra de repente, ao contrário do costume não bateu a porta ao entrar, com naturalidade me ajuda a organizar as folhas que saltam da impressora e me pergunta com os olhos e o sorriso: “ E, aí o que temos pra hoje?” Percebo que meu melhor amigo tem apenas seis anos. Penso que a felicidade pode ser um raio de sol que escapa do céu nublado. 






Publicado no Folha de Londrina  em 2014

Seus olhos



Seus olhos.

            Por mais que tento prestar atenção, disperso-me. As palavras que saem de sua boca se diluem no ar, começo a navegar no verde-mar dos seus olhos. Volto à realidade num corte abrupto, quando você me indaga sobre alguma questão. Concordo com você sempre, mesmo porque já me perdi há tempos em seu monólogo, quando suas palavras se dissolveram em música, no exato momento que um raio de sol atravessou a janela; iluminou o seu rosto, deixando os seus olhos esverdeados.  Perdoa-me pela minha desatenção, porque o seu discurso tem conteúdo, e você não é apenas mais uma superfície bonita sobre uma carcaça vazia. Pelo contrário, seu interior tem a intensidade de uma supernova, enquanto seu exterior foi esculpido por um artista celeste. A providência divina lhe concedeu tantos atributos, eu não consigo nem mesmo me concentrar. Por mais que o assunto exija seriedade, encontro-me aqui vendo poesia em seus olhos.
            No entanto você sabe que eu não tenho jeito mesmo, gosto de brincar com as palavras no papel, enquanto as palavras balbuciadas pela minha boca, diante de ti, não emitem som algum. Gostaria de debater com você esses assuntos técnicos e intelectuais, mas você percebe o quanto fico intimidado em sua presença e agora sabe o porquê.  Prometo esforça-me para não divagar à sua frente, é uma falta de educação de minha parte, mesmo que tenha motivos nobres, como essa tentativa de lisonjear a beleza de seus olhos através dessa prosa lírica.
            Sem pretensão alguma, essa crônica é apenas um singelo pedido de desculpas pela minha cara de bobo à sua frente. Sem cobiça alguma, apenas tenho a crença de que o belo deve ser louvado, e os bons sentimentos devem ser guardados em folhos de papel como esta.  E por que não entregue-los a musa que os proporcionou?


                                                    Publicado no Folha de Londrina em 26/03/2014


                                                                                                                    

Um palhaço triste



Um palhaço triste.


Com uma mão ela segurava com delicadeza o meu queixo, com a outra ela pintava meu rosto. Nós dois de pé no meio do salão, os corpos alinhados em linha reta; tão juntos que os narizes quase se tocavam; sentia sua respiração batendo de leve no meu rosto; seus grandes olhos verdes ofuscavam minha visão.
Naquele instante esqueci que em breve as cortinas iriam se abrir e teríamos uma peça para encenar. Esqueci todo o meu texto, que havia várias outras pessoas no salão, que se arrumavam e liam suas falas em voz alta; esqueci até mesmo que ela só estava pintando o meu rosto. Naquela posição, com os corpos juntos, os rostos próximos... Parecia o instante iminente que procede a um beijo. Deus sabe o quanto desejei aquele beijo. Desejei que a vida fosse como um teatro, que pudesse ter ensaiado antes aquela cena, que tivesse a fala adequada na ponta da língua, que nossa cena terminasse com um beijo, e que quando nos beijássemos as cortinas se abrissem e o público nos recebesse com uma salva de palmas. Mas a vida não é um teatro. Nem ao menos na ficção seriamos um par romântico.
Os lábios dela na minha frente, tão próximos, que apenas com uma leve inclinação, eu poderia tocá-los. Os poucos centímetros que nos separavam foi uma distância que eu não pude ultrapassar. Eu ali sem saber se olhava para os seus lábios, ou para seus olhos, se a beijava, ou fugia. Ela como se tivesse adivinhado meus pensamentos, largou o meu queixo e tapou os meus olhos. Depois abaixou suas mãos, ainda com o corpo próxima ao meu, sorriu e disse que havia terminado, afastou-se devagar e foi maquiar outra pessoa. Eu que nunca compreendi a linguagem das mulheres, fiquei sem entender o significado daquele gesto.

E quando as cortinas se abriram, nem mesmo as gargalhadas da plateia, a salva de palmas no final do espetáculo... Nada foi capaz de recuperar o meu ânimo. Fui para casa sem tirar a maquiagem do rosto, quando me olhei no espelho, vi que não há nada  mais irônico, do que um palhaço triste.  


Publicado no Folha de Londrina em 22/01/ 2014