quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Abraços perdidos.



Abraços perdidos.

A primeira leitura que fiz neste 2016 foi ‘Os abraços perdidos’, de João Chiodini, o livro me chamou a atenção pelas ótimas criticas que recebeu, pelo título e capa instigantes e principalmente pelo tema: a paternidade. Tema tão delicado e ambíguo. Já tão rodado na ficção em geral, mas que nunca deixará de dar excelentes histórias, como nesse livro. Não é uma leitura leve e reconfortante, muito pelo contrário, é áspera e asfixiante.  O tipo de livro que, às vezes, você tem que fechar e sair para dar uma volta, respirar ar puro. Que você começa a odiar tanto antagonista quanto protagonista, porque não há heróis no livro, tudo é demasiadamente humano. A fragilidade das relações, os equívocos, os desencontros, as formas de amar deturbados por uma série de erros, mal entendidos, mágoas e rancores. Não há rebuscamento no livro, nem frases e metáforas cuidadosamente moldadas, como se tornou comum na literatura nacional contemporânea, onde há uma linha tênue entre poesia e prosa. No livro tudo é tido sem rodeios, seco, certeiro, na veia, nem por isso se pode afirmar que não há poesia no livro, a poesia está justamente mostrada na crueza dos fatos, na vida  como ela é, em mostrar que há beleza mesmo nas situações mais horríveis, assim, virando do avesso, te tirando do chão por alguns segundos. É possível afirmar, na narrativa, que pai e filho se amam e se odeiam ao mesmo tempo, porque tudo é por demais ambíguo, contraditório e conflituoso, em suma humano.
O livro me despertou uma ânsia em escrever, algo que sempre procuro em minhas leituras e raras vezes, alcanço, tive o anseio de relatar a relação conflituosa que tive  com meu velho, e que várias vezes me vi nas páginas daquele livro, como se minha vida tivesse sido roubada e transformada em literatura. E instigado pelo titulo, quis contar a histórias de três abraços, de três homens, meu velho,  meu filho e eu. Abraços quase dados, apertados e perdidos.
O meu pai não foi um homem mal, demorei muito para ter essa convicção. Como de praxe durante a infância ele foi meu herói, não entendia como minha mãe e irmão reclamavam tanto, mesmo ele tendo pouco tempo pra mim, me bastava um copo de refrigerante, dez minutos de brincadeiras e alguns trocados aos domingos. Quando ele chegava bêbado em casa e virava a noite brigando com minha mãe, rezava para que aquilo parasse, rezava até não aguentar mais e cair no sono, e quando minha mãe anunciou que iria se separar eu rezei tanto para que isso nunca acontecesse que fui atendido. Quando fui trabalhar junto com meu pai com cerca de 10 anos, dentro de pouco tempo eu perdi o meu herói, dentro de poucos anos a gente parou de se falar, eu perdi meu pai muito antes dele morrer. O meu pai era homem de bom coração, trabalhador e honesto, o seu problema era que pra ele a vida se resumia em acumular calos na mão e dinheiro no banco, todo o resto era supérfluo, família, religião, lazer, cultura. A vida  era trabalho duro, braçal e acumulo de renda, e queria enfiar essa visão de mundo em seus filhos, goela abaixo, porque para ele nenhuma outra tinha sentido; no mundo em que vivemos não tiro por completo sua razão. Demorei muito para entendê-lo, que a culpa não era apenas dele, era da criação que teve, do meio em que cresceu e de sua baixa escolaridade, que o levou a nunca aprender a ler. Como exigir sensibilidade de alguém que nunca pôde ler um livro? Como exigir amor paterno de alguém que não soube o que é isso?
Com pouco mais de 10 anos tive que retirar as amídalas, por alguma razão que até hoje não entendo, ele acompanhou eu e minha mãe até o hospital que ficava em outra cidade, fato que jamais se repetiu, ele sempre foi desleixado em relação a questões de saúde. Mas levou, e ficou até o fim. Eu ainda anestesiado não tinha forças pra andar, e o caminho até o carro era longo, por isso me apoiei nele, no meu andar bêbado, e ficamos assim por alguns minutos nesse semiabraço em movimento, até minhas pernas vacilarem e ele não ter alternativa a não ser me carregar no colo, foi o último abraço que tivemos; o pai que carrega o filho desfalecido em seus braços, o filho aconchegado no  colo do pai, depois disso não houve nenhuma ternura demostrado em contato físico.
Quando me tornei pai, via meu filho poucas vezes por semana, eu trabalhava fora da cidade e havia me separado da mãe dele, o via uma ou duas vezes por semana. Sai da cidade onde trabalhava que ficava cerca de 90 quilômetros da minha, acabei perdendo a hora de manhã, sempre tive dificuldade em sair da cama, por isso atrasei cerca de uma hora, sabia que meu filho estaria me esperando, por isso acelerei para compensar minha displicência. Quando enfim pude chegar em casa, meu filho com pouco mais de 4 anos, correu ao meu encontro, pulou no meu colo, laçou os braços no meu pescoço, as pernas na minha barriga em um abraço tão apertado que chegou a doer, o abraço de um filho que queria muito ver o pai, de uma criança que não sabia demostrar em palavras o que sentia, um abraço que dizia muita coisa, que havia algo errado que ele não sabia como contar, que precisava de mim, e que ele não podia soltar aquele abraço, assim como eu não podia abandoná-lo. Foi o abraço mais gostoso ao mesmo tempo mais doloroso que tive na vida.
O terceiro abraço foi outro semiabraço, ou um meio abraço entre meu pai e eu. Meu velho em seu leito de morte, nós dois sem trocar palavra alguma, por anos, nada pra ser dito, precisávamos nos despedir, outros esperavam para visitá-lo na UTI, nenhuma palavra de conforto ou consolo, nenhum pedido de perdão, algo precisava ser feito, então tentamos nos abraçar, mas não conseguimos direito, tive receio de machucá-lo, ferir a cirurgia recém-feita, travei como tantas outras vezes; não sei, e nada mais pode ser dito, porque ambos romperam em pranto, então eu virei as costas e fugi, porque tive vergonha das minhas lágrimas e das dele também, porque ele sempre tentou me ensinar que o homem tem que ser forte, e nenhum de nós era forte, éramos fracos, humanos.
     

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