Abraços perdidos.
A primeira leitura que fiz neste 2016
foi ‘Os abraços perdidos’, de João Chiodini, o livro me chamou a atenção pelas
ótimas criticas que recebeu, pelo título e capa instigantes e principalmente
pelo tema: a paternidade. Tema tão delicado e ambíguo. Já tão rodado na ficção
em geral, mas que nunca deixará de dar excelentes histórias, como nesse livro.
Não é uma leitura leve e reconfortante, muito pelo contrário, é áspera e
asfixiante. O tipo de livro que, às
vezes, você tem que fechar e sair para dar uma volta, respirar ar puro. Que
você começa a odiar tanto antagonista quanto protagonista, porque não há heróis
no livro, tudo é demasiadamente humano. A fragilidade das relações, os
equívocos, os desencontros, as formas de amar deturbados por uma série de
erros, mal entendidos, mágoas e rancores. Não há rebuscamento no livro, nem
frases e metáforas cuidadosamente moldadas, como se tornou comum na literatura
nacional contemporânea, onde há uma linha tênue entre poesia e prosa. No livro tudo
é tido sem rodeios, seco, certeiro, na veia, nem por isso se pode afirmar que
não há poesia no livro, a poesia está justamente mostrada na crueza dos fatos,
na vida como ela é, em mostrar que há beleza mesmo nas situações mais
horríveis, assim, virando do avesso, te tirando do chão por alguns segundos. É
possível afirmar, na narrativa, que pai e filho se amam e se odeiam ao mesmo
tempo, porque tudo é por demais ambíguo, contraditório e conflituoso, em suma
humano.
O livro me despertou uma ânsia em
escrever, algo que sempre procuro em minhas leituras e raras vezes, alcanço,
tive o anseio de relatar a relação conflituosa que tive com meu velho, e
que várias vezes me vi nas páginas daquele livro, como se minha vida tivesse
sido roubada e transformada em literatura. E instigado pelo titulo, quis contar
a histórias de três abraços, de três homens, meu velho, meu filho e eu. Abraços
quase dados, apertados e perdidos.
O meu pai não foi um homem mal, demorei
muito para ter essa convicção. Como de praxe durante a infância ele foi meu
herói, não entendia como minha mãe e irmão reclamavam tanto, mesmo ele tendo
pouco tempo pra mim, me bastava um copo de refrigerante, dez minutos de
brincadeiras e alguns trocados aos domingos. Quando ele chegava bêbado em casa
e virava a noite brigando com minha mãe, rezava para que aquilo parasse, rezava
até não aguentar mais e cair no sono, e quando minha mãe anunciou que iria se separar eu rezei tanto para que isso nunca acontecesse que fui atendido. Quando
fui trabalhar junto com meu pai com cerca de 10 anos, dentro de pouco tempo eu
perdi o meu herói, dentro de poucos anos a gente parou de se falar, eu perdi
meu pai muito antes dele morrer. O meu pai era homem de bom coração,
trabalhador e honesto, o seu problema era que pra ele a vida se resumia em acumular
calos na mão e dinheiro no banco, todo o resto era supérfluo, família,
religião, lazer, cultura. A vida era trabalho duro, braçal e acumulo
de renda, e queria enfiar essa visão de mundo em seus filhos, goela abaixo,
porque para ele nenhuma outra tinha sentido; no mundo em que vivemos não tiro
por completo sua razão. Demorei muito para entendê-lo, que a culpa não era
apenas dele, era da criação que teve, do meio em que cresceu e de sua baixa
escolaridade, que o levou a nunca aprender a ler. Como exigir sensibilidade de
alguém que nunca pôde ler um livro? Como exigir amor paterno de alguém que não
soube o que é isso?
Com pouco mais de 10 anos tive que
retirar as amídalas, por alguma razão que até hoje não entendo, ele acompanhou
eu e minha mãe até o hospital que ficava em outra cidade, fato que jamais se
repetiu, ele sempre foi desleixado em relação a questões de saúde. Mas levou, e
ficou até o fim. Eu ainda anestesiado não tinha forças pra andar, e o caminho
até o carro era longo, por isso me apoiei nele, no meu andar bêbado, e ficamos
assim por alguns minutos nesse semiabraço em movimento, até minhas pernas vacilarem
e ele não ter alternativa a não ser me carregar no colo, foi o último abraço
que tivemos; o pai que carrega o filho desfalecido em seus braços, o filho
aconchegado no colo do pai, depois disso
não houve nenhuma ternura demostrado em contato físico.
Quando me tornei pai, via meu filho
poucas vezes por semana, eu trabalhava fora da cidade e havia me separado da
mãe dele, o via uma ou duas vezes por semana. Sai da cidade onde trabalhava que
ficava cerca de 90 quilômetros da minha, acabei perdendo a hora de manhã,
sempre tive dificuldade em sair da cama, por isso atrasei cerca de uma hora,
sabia que meu filho estaria me esperando, por isso acelerei para compensar
minha displicência. Quando enfim pude chegar em casa, meu filho com pouco mais
de 4 anos, correu ao meu encontro, pulou no meu colo, laçou os braços no meu
pescoço, as pernas na minha barriga em um abraço tão apertado que chegou a
doer, o abraço de um filho que queria muito ver o pai, de uma criança que não
sabia demostrar em palavras o que sentia, um abraço que dizia muita coisa, que
havia algo errado que ele não sabia como contar, que precisava de mim, e que
ele não podia soltar aquele abraço, assim como eu não podia abandoná-lo. Foi o
abraço mais gostoso ao mesmo tempo mais doloroso que tive na vida.
O terceiro abraço foi outro semiabraço,
ou um meio abraço entre meu pai e eu. Meu velho em seu leito de morte, nós dois
sem trocar palavra alguma, por anos, nada pra ser dito, precisávamos nos
despedir, outros esperavam para visitá-lo na UTI, nenhuma palavra de conforto
ou consolo, nenhum pedido de perdão, algo precisava ser feito, então tentamos
nos abraçar, mas não conseguimos direito, tive receio de machucá-lo, ferir a
cirurgia recém-feita, travei como tantas outras vezes; não sei, e nada mais
pode ser dito, porque ambos romperam em pranto, então eu virei as costas e
fugi, porque tive vergonha das minhas lágrimas e das dele também, porque ele
sempre tentou me ensinar que o homem tem que ser forte, e nenhum de nós era
forte, éramos fracos, humanos.
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