segunda-feira, 27 de junho de 2016

O amor foi pro ralo.



“Eu joguei o amor no ralo”. Ela disse, digo que quem está sendo dramática dessa vez era ela, ela disse que conhece as pessoas, que é dura demais com as palavras, por mais que eu negue, ela tem razão. O amor foi pro ralo, não por o que ela disse, ou deixou de dizer, foi porque eu enfim enxerguei o obvio, que tudo que ela via parecia ser grande porque ela o via de perto, eu que observava de longe, tudo parecia muito pequeno, apesar de tudo, ela era só uma menina. Amor de menina é tão efêmero quanto o gosto de chiclete que ela te deixa na boca, tão fugaz quanto o perfume doce que ela  deixa na camiseta, tão raso quanto uma piscina de bolinhas, tão volúvel quanto a fissura de acompanhar likes no facebook, amor de menina não dura duas ou três frases atravessadas no whatsapp.
Na ressaca de um amor que termina antes do começo, reencontro meu ex-amor, por não ser uma menina ela veste suas melhores roupas, sobretudo preto, bota preta acima dos joelhos, maquiagem escura, sabe que gosto do contraste que o preto faz em sua pele, exala sensualidade em cada movimento. Mal conseguimos trocar palavra alguma, pressas na garganta feito suspiro, soluço, espirro, frases entrecortadas que formam uma interjeição desajeitada. Por não saber se comunicar com palavras, apelamos para a linguagem do corpo, dançamos uma falsa triste de despedida, errei os passos, tropecei nas pernas, pisei no vestido longo. E por mais que tentasse reencontrar o que fomos, éramos duas pessoas completamente diferentes.
Fui levá-la embora a pé, caminhamos como em uma marcha fúnebre, num silêncio cortante como o prenúncio de uma notícia ruim que nunca é dada, nos abraçamos em um pedido de perdão silencioso por toda a dor causada. “ Se cuida” , eu digo, por saber que nenhum dois poderia mais cuidar um do outro.
O amor se foi, escorrendo com água quente, debaixo do chuveiro, levando pro ralo os últimos resquícios do seu corpo em mim.
Publicado no Literatura Amarga em junho de 2016

terça-feira, 21 de junho de 2016

Conto de Fadas


Ela se foi, não olhou pra trás, não se despediu. Orgulhosa, chorou no escuro, sofreu em silêncio, na espera que a salvasse no alto da torre, matasse aquele dragão aterrorizante que vivia à espreita, chamado solidão. Mas eu nunca servi pra príncipe, confundo dragões com moinhos de vento, sou um bobo-da-corte que já não faz ninguém rir. Quando ela percebeu que não seria resgatada nem com um cavalo branco ou burro-falante, desceu do alto da torre e viu que nossa primavera havia passado, o chão coberto de folhas secas, as árvores com galhos secos e retorcidos, não sobrou o colorido de nenhuma flor, só restava os espinhos e aquele vento frio que causava arrepios e uivava. Nosso conto de fadas chegara ao fim sem seu final feliz.
Eu ainda vestia minha armadura, agora enferrujada pela chuva e vento, não sairia do corpo com facilidade. Eu havia perdido mais uma batalha, o coração veterano de guerra ganhara mais algumas cicatrizes, embora não conquistasse medalha alguma. Ela ainda era uma princesa, porém sem reino, sem castelo, sem súditos, e nas noites escuras ainda pressentia o dragão à espreita. O nosso conto de fadas não foi adaptado pela Disney, não virou figurinha de chiclete, não fez nenhuma criança feliz.
Ela quis voltar, não havia lugar pra voltar, nosso conto de fadas foi consumido pelo Nada, Bastian não conseguiu salvar a tempo, virou uma História Sem Fim. O coelho correu apresado, sem que ninguém conseguisse alcançar, dormimos a espera de um beijo pra acordar que nunca veio, sapatos ficaram pelo caminho na fuga, sem que fossem encontrados, a carruagem virou abóbora e quando a rainha mandou cortar a cabeça, de fato havíamos perdido a cabeça.
No fim já não havia mágica alguma, e estávamos muito longe de um final feliz, tudo era amontoado de palavras que não foram ditas ou escritas, pressas pra sempre no calabouço, calados, mãos no bolso, chutando as pedrinhas pelo caminho que alguém deixou pra não se perder, agora não vai encontrar o caminho de volta.
Ela esperou que eu escrevesse nosso final feliz, sabia da minha mania de escritor, embora não havia percebido que eu não sabia escrever finais felizes, gostava de escrever contos, que não tinha nada de fadas, nos contos os finais sempre ficam subsentidos.
No fim tudo entre nós era um acumulado de mal entendidos, na nossa história o grande mal, foi tudo que não foi entendido.
Publicado no Literatura Amarga, junho de 2016

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Virando a mesa.



Eu sei quando alguém entra na minha vida pra fazer um estrago. Eu aprendi a ler todos os sinais. Eu sei quando alguém entra pra virar a mesa, derrubar garrafas e copos, estilhaços de vidro e manchas de bebida pelo chão. Quando esbarrei com ela uns três anos atrás, sabia que havia algo diferente, eu sei quando alguém vai entrar na minha história, antes mesmo da nossa história juntos começar. Não foi a toa que a observei, com uma luz amarela acessa, que dizia: “Cara, para com isso, ela é só uma menina”. Daí quando eu afasto a ideia torta como quem afasta um mosquito de um zumbido irritante, ela ressurge. Mas eu já a conheço, ela não ia se contentar em apenas voltar, ela precisa de uma entrada triunfante. Sempre quis ver uma adaptação de algo que escrevi, ele fez e me mandou antes mesmo de dizer “oi”. Ela é do tipo que acena de longe e diz: “ Eí, bobão, roubei teu coração!”. Ela escreveu um texto lindo pra mim, ela voltou minhas armas contra mim, ela me desarmou, ela jogou os dados e abraçou o tabuleiro, ganhou a corrida antes da largada, descobriu meus pontos fracos sem esforço, sequestrou meu coração e não pediu resgate.
Ela me deixa comovido, mordido, fodido, doido e doído. Uivando pra lua sete noites seguidas, bebendo conhaque feito água; perdi a concentração que já não tinha, meus pensando sempre indo na direção dela, eu tentando controlá-los, com quem quer controlar uma enxurrada com um copo d’água, uma revoada de pássaros com um estilingue. Virando na cama como se a buscasse num sonho, perdi o sono, esqueci de dormir, perdi a hora, esqueci de acordar.  Ela consegue ser vilã e mocinha ao mesmo tempo num amor bandido. Crazy Love. Ela consegue enlouquecer até eu que já sou louco, Alice através do espelho, eu o Chapeleiro, Arlequina no esquadrão suicida, eu coringa com uma granada na boca.
E aqui vou eu agora, louco pra proteger minha princesa do dragão, lá se vai minha espada no primeiro golpe, torta pra sempre ao dar em cheio num moinho de vento. Eu não sirvo pra príncipe, eles são muitos chatos, quero ser bobo-da-corte só pra desenhar um sorriso no seu rosto,pôr todas suas lágrimas num vidrinho azul-marinho, entregar ao Merlin pra fazer um feitiço, transformar todas em fogos de artificio.
Menina vou te proteger do mundo, mulher vou te oferecer o meu mundo.
Publicado no Literatura Amarga em maio de 2016

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Se perca.



Sinta. Não tenha medo, você não se encaixa no papel de garotinha assustada. É algo que não combina, fora do lugar e do contexto lógico, como uma borboleta nadando dentro de um aquário, seria bonito ela e os peixinhos coloridos, mas também seria um delírio. Eu sei, que por de trás da sua jaqueta de couro, das tatuagens, da pele áspera, bem lá no fundo tem essa garotinha assustada, com medo de amar e ser amada, pássaro abatido no ar, asa ferida. Você pode negar, se esconder nesses inúmeros personagens que você inventa a todo instante, mas você não me engana, eu conheço as pessoas, aprendi a ler pessoas como um livro. Sou muito mais velho que aparento ser, minha alma carrega o peso dos séculos. Eu não sei ao certo quantas pedradas você levou no seu voo, deduzo que foram muitas, suponho que foram pela sua ferida, você escondeu a cicatriz atrás de uma tatuagem bem grande achando que ninguém iria notar, mas eu reconheço uma asa ferida quando vejo.  Não estou aqui pra concertar sua asa, estou aqui pra te mostrar que você não precisa dela. Se joga, minha linda, mergulha no vazio do espaço só com uma corda de náilon amarrada no calcanhar, o calcanhar pode ser o ponto fraco e o que te mantem presa à vida, tudo é uma contradição. Não tenha medo de se machucar, tenha medo de não viver, não sentir, isso sim é morrer a cada instante. Você ainda vai se machucar muito, não há como evitar, a vida pra você é um imenso horizonte trêmulo, eu gostaria, mas não posso soprar as feridas todas às vezes, é só você não cutucar a casquinha que  sara.
Todos nós temos problemas psicológicos e psicodélicos, um coração despedaçado, coração só é bonito no desenho no papel, na verdade ele parece um afresco barroco que levou uma pedrada, faltam peças justamente pra se encaixar em outro coração estilhaçado, deixe se encaixar.
Não estou aqui pra segurar sua mão enquanto você caminha no slack line, estou aqui pelo contrário, estou aqui pra você  perder o equilíbrio, sentir a vertigem de chão, cair. Quero ser o pássaro que come as migalhas que você deixou pelo caminho, o frio no estômago, o susto, o coração em disparada, o lábio trêmulo, o olhar arregalado. Não quero ser o príncipe ou o vilão na sua história, quero ser o anti-herói, aquele que faz o certo por caminhos errados, há uma linha tênue entre o certo e o errado, estou aqui pra arrebentar essa linha.
Estou aqui pra te ensinar a ouvir música no silêncio, a escrever poesia com o dedo no ar, sou especialista em encontrar desenhos em nuvens, mestre em caçar borboletas e águas-vivas no fundo do mar, doutor em procrastinação, PhD na arte de se perder.
Estou aqui pra te mostrar o outro lado, te virar de ponta-cabeça, do avesso, estou aqui pra te ajudar a se perder.

Publicado no Literatura Amarga em maio de 2016.